09/08/2011
O meio médico, ocupacional e judicial enfrentam constantemente questões concernentes à capacidade do indivíduo para executar certas atividades laborais, desde as mais simples, às mais intrincadas. A redução dessa capacidade, em vários níveis, pode gerar implicâncias pessoais, laborais, financeiras e jurídicas, cuja importância determinam a necessidade de se avaliar a capacidade para o trabalho por meio de técnicas e de conhecimentos médicos, feitas pelo médico assistente (médico que assiste ao paciente) ou pelo médico perito.
A avaliação da incapacidade é complexa e exige sistemas que buscam medí-la (quando possível) e classificá-la. A classificação da incapacidade é uma maneira qualitativa de diferenciar seus diversos tipos e identificá-los segundo características básicas, tais como o tempo ou duração da incapacidade. Nesse aspecto, a incapacidade pode ser classificada em temporária ou permanente (também chamada de definitiva). Incapacidade temporária é aquela que tem uma duração limitada no tempo ou para a qual há tratamentos capazes de atenuar significativamente ou anular a incapacidade. A incapacidade permanente habitualmente se refere a uma seqüela residual intratável ou que já foi submetida efetivamente a todos os tratamentos médicos disponíveis para a sua melhora, tendo já alcançado a melhor condição possível.
Na prática, não é raro observar laudos periciais concluindo por incapacidade permanente em lesões ou doenças que dispõem de tratamentos para a sua melhoria ou erradicação. Um exemplo comum é o trabalhador braçal com suposto diagnóstico de tendinite de ombro, “já submetido a inúmeros tratamentos sem melhora” (sic). A análise minuciosa pode deflagrar que o mesmo indivíduo apenas visitou plantões médicos ou não especialistas, tendo sido submetido a tratamentos parciais ou inadequados, situações que não autorizam classificar sua incapacidade como permanente, mas como temporária. Deverá, sim, ser encaminhado a especialistas e a tratamentos adequados.
Outra divisão corrente para a classificação da incapacidade infere se a incapacidade permite a execução plena ou parcial de uma tarefa. Neste caso, a incapacidade total é aquela que impede por completo a execução da tarefa, enquanto a incapacidade parcial permite executar apenas partes da mesma tarefa. Esses termos podem ganhar usos distintos na dependência do contexto contratual, laboral ou judicial. A incapacidade total pode se referir também à incapacidade de um indivíduo para executar quaisquer tipos de atividades profissionais ou, ainda, se referir à incapacidade de um indivíduo em executar por completo uma única atividade em específico (a que está em discussão no processo judicial ou no contrato com uma seguradora, por exemplo).
Todavia, o estudo e a descrição das incapacidades não se limitam somente a termos como temporária e permanente ou parcial e total. A complexidade do assunto aumenta ao se constatar que uma incapacidade pode existir no nível pessoal, mas não no cenário ocupacional e vice-versa. A fim de compreender esse aparente paradoxo, é necessário distinguir a limitação funcional da incapacidade específica.
Limitação Funcional X Incapacidade Específica
A distinção etimológica das incapacidades não é regulamentada no Brasil, de forma que essa distinção pode fazer uso de vários termos para fins didáticos e melhor compreensão de leigos, advogados, autoridades e peritos.
A limitação funcional (ou incapacidade anátomo-funcional) pode ser compreendida como uma incapacidade pessoal, ou ainda, uma incapacidade médica ou médico-técnica. Esses termos todos têm um par específico na língua inglesa, qual seja, impairment. Essa incapacidade se refere a perdas ou reduções específicas de órgãos ou funções e podem não ter uma correspondência direta com a incapacidade laboral.
Já a incapacidade específica pode ser compreendida como uma incapacidade ocupacional ou social. O termo de melhor correspondência na língua inglesa para esse tipo é disability. Em português, impairment e disability, em geral, têm a mesma tradução (= incapacidade), todavia, representam tipos bastante distintos de incapacidade e sua distinção tem importância fundamental, principalmente no meio jurídico. Abaixo, seguem exemplos práticos da diferença entre impairment e disability.
A incapacidade anátomo-funcional (limitação funcional) ou médico-técnica (incapacidade pessoal ou impairment) pode ser melhor ilustrada com exemplos, como a perda da flexão total do cotovelo, medida objetivamente em graus. Por exemplo: incapacidade de flexionar o cotovelo dos 70o em diante.
O entendimento da incapacidade ocupacional ou social (incapacidade específica ou disability) também pode se servir de exemplos, como a incapacidade de digitar em teclados e, consequentemente, incapacidade para o exercício da profissão de digitador.
Com isso, é possível perceber que um indivíduo que apresenta uma incapacidade real pode eventualmente não apresentar incapacidade para o exercício de sua profissão. Unindo ambos os exemplos supra, o sujeito com a incapacidade de flexionar o cotovelo dos 70o em diante pode perfeitamente continuar a exercer a profissão de digitador, já que esta atividade exige flexão do cotovelo somente até 50o. Ele tem um problema no cotovelo que não o impede de digitar (impairment ≠ disability). Trata-se de um exemplo de uma incapacidade parcial e permanente (médico-técnica), sem uma incapacidade ocupacional (específica).
Outro exemplo seria uma fratura do 5º quirodáctilo esquerdo (fratura do menor dedo da mão) acometendo um jogador de futebol e um pianista clássico profissional. Trata-se de uma incapacidade parcial e temporária (médico-técnica) em ambos os sujeitos, todavia, implica em ausência de incapacidade ocupacional no primeiro (nenhuma incapacidade para jogar futebol) e em uma incapacidade total e temporária no segundo (para tocar piano). O pianista apenas poderá retornar ao trabalho após consolidação óssea da sua fratura e reabilitação física dos respectivos movimentos. Simplificando em uma tabela:
Análise de incapacidade para a fratura do 5º quirodáctilo esquerdo (fratura do 5º dedo da mão):
Jogador de futebol |
Pianista clássico |
|
Impairment |
Incapacidade parcial e temporária |
Incapacidade parcial e temporária |
Disability |
Incapacidade AUSENTE |
Incapacidade TOTAL e temporária |
A análise das conseqüências práticas de uma incapacidade não deve se limitar ao seu impacto laboral, mas também pessoal, envolvendo as atividades de vida diárias. Em um laudo pericial, pode constar o impacto que a incapacidade teve em atividades fundamentais, como capacidade de se manter em pé ou sentado, elevação (sentar-se e levantar-se), cuidados pessoais e higiene pessoal, comunicação, deambulação, bem como o impacto nas percepções do indivíduo e atividades sensoriais.
A incapacidade reflete o impacto que as enfermidades exercem na função de sistemas específicos e nas habilidades do paciente em interagir de modo necessário, habitual e pessoal dentro da sociedade. A limitação funcional se refere a habilidade de um indivíduo, porém sem referência às exigências situacionais.
A incapacidade pode ser entendida como uma fenda entre a capacidade pessoal e a demanda do meio ambiente. Usando um exemplo bem simples, pode-se dizer que em relação a “trazer pente à cabeça”, a limitação funcional está relacionada à “capacidade de alcance” e a incapacidade com o ato de “pentear o cabelo”.
Diversos fatores interagem na avaliação limitação funcional e da capacidade para um determinado trabalho, principalmente a presença de deformidade, atrofia, instabilidade, diminuição da força, distúrbio neurológico, nível de dor e de fadiga.
Quantificação da Incapacidade. Inadequação da Tabela SUSEP
A maioria das incapacidades é parcial e pode ocorrer em diferentes graus. Frequentemente há a necessidade de se de definir a gravidade e a quantidade de incapacidade que acometeu o indivíduo. Essa necessidade é ainda maior no meio judicial, o qual envolve valores indenizatórios e outros.
No Brasil, não há regulamentação ou ordenamento jurídico a respeito da quantificação da incapacidade. Não há, sequer, sugestão da bibliografia a ser utilizada. Na prática, observa-se que, quando solicitada, a quantificação da incapacidade costuma ser realizada com base na tabela da SUSEP (Superintendência de Seguros Privados – Ministério da Fazenda), a qual não é adequada.
A “tabela da SUSEP” (circular nº 029, de 20/12/1991), aprova normas para o seguro de acidentes pessoais. Trata-se de normas para seguro, mas não regras de avaliação de incapacidade.
Tal tabela traz um cálculo da indenização em caso de invalidez permanente e não uma avaliação de incapacidade. De fato, o nome da tabela consta no art. 5º da referida circular é bastante explicativo por si só: “Tabela para Cálculo da Indenização em Caso de Invalidez Permanente”, sendo ela um conjunto de porcentagens sobre a importância segurada, e não porcentagens de incapacidade.
As partes reclamantes nos processos judiciais não são importâncias seguradas. São pessoas.
Há fontes mais apropriadas para a avaliação e quantificação de incapacidade. A opção por documentos médicos amplamente debatidos e aceitos é preferível. O principal deles é o “Guides to the Evaluation of Permanent Impairment”, 5ª edição, 613 pgs., publicado pela AMA (American Medical Association), uma das mais respeitadas associações médicas do mundo. Trata-se de análise quantitativa da incapacidade de inúmeras morbidades. A última edição contou com a colaboração de 135 médicos especialistas, muitos de Universidades conceituadas, além da colaboração e aprovação de 30 sociedades médicas de especialidades, comitês de avaliação de incapacidade, entre outras entidades. O mesmo livro é oficialmente aprovado pela legislação de países, como a Austrália, Nova Zelândia, Canadá, Inglaterra e vários Estados norte-americanos. Outros Estados têm normas próprias inteiramente baseadas no “Guides”.
Trata-se de obra que recolhe evidências científicas neste campo, quando elas existem e, nos casos em que ainda são ausentes, tem as conclusões baseadas em consensos de especialistas.
A quantificação de incapacidade, quando esta é viável, é apresentada na forma de porcentagens. Os valores percentuais são úteis nos casos de cálculo de indenizações baseados, além de apresentar uma boa noção de quantidade de incapacidade ao juízo para que as decisões necessárias sejam tomadas. Além disso, podem estabelecer padrões e referências para maior uniformização dos laudos, reprodutibilidade das avaliações periciais e redução do risco de vieses e desvios.
Outras obras utilizadas na Europa são o “Barème International des Invalidités Post-traumatiques” (com tradução para o espanhol em “Valoración de las Discapacidades y del Daño Corporal”), atualizado para “Evaluation du handicap et du dommage corporel: Bareme International des Invalidites”, todavia, não têm a mesma sistemática nem ampla aprovação médica ou jurídica que o “Guides to the Evaluation of Permanent Impairment”, sendo este último o mais recomendado.
Bibliografia
ICF – International classification of functioning, disability and health. Geneva, World Health Organization, 2001.
Cocchiarella, L.; Andersson, G. et al Guides to the Evaluation of Permanent Impairment, 5ª ed. American Medical Association. 613p.
Circular SUSEP nº 029, de 20/12/1991 http://www.susep.gov.br/textos/Cir.29-91Consolidada.pdf
Louis Melennec; et al. Evaluation du handicap et du dommage corporel : barème international des invalidités. Paris: Masson, 2000.